sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A Poética de um Povo

Sabor Açaí – Nilson Chaves

E pra que tu foi plantado
E pra que tu foi plantada
Pra invadir a nossa mesa
E abastar a nossa casa
Teu destino foi traçado
Pelas mãos da mãe do mato
Mãos prendadas de uma deusa
Mãos de toque abençoado
És a planta que alimenta
A paixão do nosso povo
Macho fêmea das touceiras
Onde Oxossi faz seu posto
A mais magra das palmeiras
Mas mulher do sangue grosso
E homem do sangue vasto
Tu te entrega até o caroço
E a tua fruta vai rolando                                                                                                                                 Para os nossos alguidares
E se entrega ao sacrifício
Fruta santa fruta mártir
Tens o dom de seres muito
Onde muitos não têm nada
Uns te chamam açaizeiro
Outros te chamam jussara
Põe tapioca põe farinha d'água
Põe açúcar não põe nada                                                                                                                        Ou me bebe como um suco
Que eu sou muito mais que um fruto
Sou sabor marajoara
Sou sabor marajoara
Sou sabor.


     Durante a produção social da vida, sentidos vão sendo forjados pela manipulação simbólica dos indivíduos no trato relacional entre si, definindo rompimentos, assimilações, consentimentos, resistências, etc. Neste particular, a transmissão de todo o conteúdo de referências simbólicas às novas gerações é marcada  por acréscimos, substituições, imposições, permanências e continuidades. Na medida em que o tempo vai passando se estabelece uma espécie de decoro social implícito que constroe a cosmovisão dos homens, ensinando-os a como receber as diferentes situações que o cotidiano apresenta, é a Cultura e a História pesando sobre nossas vidas. Em função delas, compreendemos o mundo por meio da compreensão desses próprios sentidos, que vai desde um simples comportamento discreto dentro de um elevador, até a aceitação de uma religião como verdade cristalizada.

     Mas os homens, desenvolveram um meio pelo qual expressar sua cultura, e  o chamaram de Arte. Artista, portanto, é aquele que, tomado pelo auge da sensibilidade, tem a capacidade de medir as permanêcias e continuidades, rompimentos e assimilações, e traduzi-las esteticamente ao povo. Quando o povo reconhece sua própria identidade numa arte, e enxerga numa cantiga ou poesia suas experiências de vida mais autênticas, suas origens e história, essa então conquista a consagração. Muito embora atualmente a indústria cultural produza uma arte subdesenvolvida cujo único objetivo é o interesse comercial, construindo e impondo uma percepção bestial de arte, cultura e moda.

     Em “Sabor Açaí”, Nilson Chaves é muito feliz ao misturar poesia, cultura e música, porque a arte literária quando associada a música acaba por fundir duas linguagens capazes de realizar os movimentos de partida e retorno ao cerne de um povo e trazer consigo suas verdades permanentes escondidas sob camadas e camadas de pressões temporais. A literatura, especificamente, ao trabalhar com o simbólico, com o figurado, ultrapassa o palpável, estabelecendo-se num plano exterior à materialidade, metafísico, que rompe as estruturas cristalizadas do senso comum; já a música por representar não somente a tradução de sentimentos, mas sim o próprio sentimento em forma de melodia, acaba por mediar a relação entre o sujeito e a vida que o cerca, formando exatamente o todo dinâmico onde reside o musical.

     Nilson Chaves, ao metaforizar o povo paraense, usa do alimento típico presente em nossa alimentação diária, exaltando as propriedades naturais do açaizeiro e projetando-os nas características peculiares da existência do homem simples paraense. Ao mesmo tempo em que, no caminho inverso, representa no açaizeiro a potência de nosso povo:
“A mais magra das palmeiras
Mas mulher do sangue grosso                                                                                                                    E homem do sangue vasto
Tu te entrega até o caroço”.
Ainda endossando o lirismo metafórico, o eu-lírico assinala o caráter sensacional do paraense ao dizer “Que eu sou muito mais que um fruto, Sou sabor marajoara”, isto é, a compreensão do paraense perpassa necessariamente não por uma questão objetiva de conclusões baseadas na superficialidade, mas sim de sentir o que é ser deveras paraense, revelando-nos a poética de um povo quando da poesia se faz música. 

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