O
DISCURSO DOS DESCAMISADOS
Existe uma música cujo
refrão é assim: "eu queria mudar, eu queria mudar, eu queria mudar, eu
queria mudar". Posto isto, tomo a liberdade de fazer singelas
considerações acerca de identidades.
Reconhecer-se como parte integrante de
um grupo, compartilhar de seus valores e alinhar-se aos seus referenciais
simbólicos é condição precípua à existência do homem como sujeito. As relações
entre os membros deste grupo no dia a dia vão delineando uma ética fechada na
qual aquele que pretende se integrar, necessariamente tem de se adaptar.
Por meio do trecho da letra da música
supracitada, logicamente podemos depreender o lugar social de quem a escreveu
e\ou interpreta, daqueles que a cantam, e até mesmo dos que dela se apropriam,
seja para se aproximar de um mundo que não é o seu operando num universo
simbólico que lhe é exterior, seja para legitimar uma conduta num plano particular
e coletivo de afirmação fazendo dela uma plataforma por meio da qual se obtém
status social para aqueles que a concebem como padrão.
Chama-se aqui a atenção do leitor para
uma questão fundamental: a palavra estética tem origem grega, aisthésis, e significa
percepção, sensibilidade, aplicável a todo julgamento de gosto. Cada qual tem o
seu. Em todo caso, a percepção do belo está condicionada aos parâmetros socioculturais
vigentes que refletem os desdobramentos de um grupo, revelando por meio de “N”
linguagens, por exemplo, o nível de escolaridade, a condição econômica, o lugar
espacial em que moram essas pessoas, o tipo de relação que elas estabelecem com
o mundo e qual a identidade a que elas se reconhecem.
Os indivíduos partem, portanto, de suas
experiências compartilhadas no seio social, através da assimilação ou coerção,
pressão e resistência, para produzir juízos de gosto autônomos, conquanto, em
certa medida, derivadas dos signos mais íntimos de seu grupo. Aí estaria a
razão de uma frase muito reproduzida pelos cientistas sociais, a saber: “o
homem é um animal que vive preso a uma teia de significados”, Max Webber.
E em geral recorre-se ao corpo para
representar categorias mentais associadas a tendências de pensamento. É no
âmbito exterior que manifestamos o código de pertencimento que nos outorga a
presença e aceitação num grupo, traduzindo princípios tanto mais uniformizantes
quanto menos autônomos, não excluindo, contudo, a autonomia individual em sua
totalidade.
Uma das formas de “reação” (ou
adequação) dos jovens, excluídos da possibilidade plena do usufruto material
dos imperativos da moda e na tentativa de compensar a desproporcionalidade
entre os ditames da ideologia estética dominante e sua real condição
socioeconômica, é apelar para o mercado informal adquirindo roupas piratas de
marcas consagradas entre os esportistas, artistas e formadores de opinião
badalados pela mídia.
Situados à margem do rococó social, os
jovens da periferia de Belém servem-se dos shoppings populares a céu aberto como,
João Alfredo, Ver-o-Peso, brechós, etc., para ir às compras em busca de camisas
da Nike (escrito 90 dentro de uma circunferência), bermudas tactel da adidas,
chapéus de cores vivas e sandálias Duppé, além de cordões de aço e o que é mais
curioso: uma listra loura percorrendo a borda do cabelo. Sensibilizados pela
experiência do contato diário com um dado referencial estético, esses jovens
reproduzem e produzem elementos que lhes conferem identidade social e a oportunidade
única de pertencerem a um grupo no espaço-tempo em que vivem.
Na dimensão artística é do mesmo jeito: embalados
pelo rap do momento que falam do cotidiano de crimes, prisões, exclusão,
marginalidade, alguns desses jovens projetam sua vida nessas canções,
identificando nelas experiências que lhes são familiares e refletem seu dia a
dia. Assim a música participa da vida, testemunhando realidades, escancarando
verdades, lançando luz às contradições do sistema, consubstanciando as essências
de um grupo e revelando o discurso dos descamisados.
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